Há algum tempo, durante um espetáculo, enquanto o professor e pianista Álvaro Siviero tocava deslumbrantemente, eu, extasiada com aquela grandiosidade e primor expressos em notas musicais, refletia sobre como a ARTE tem o poder de nos elevar, sobre como a BELEZA nos move e como ela é a porta de entrada da VERDADE em nossa vida.
Pensava sobre sua capacidade de tocar a REALIDADE.
É fato que a arte é a expressão do belo e que a literatura nada mais é que a arte em palavras. E que toda essa beleza toca a realidade de um modo incontestável. E nesse devaneio, recordei-me de um fato.
Certa vez, comprei uma edição antiga da obra de La Fontaine — uma riqueza, um primor. Assim que chegou, comecei a folheá-la com os olhos brilhando.
Pois bem, Vitor Hugo, meu filho mais velho, chegou na cozinha enquanto eu folheava e apreciava a tal edição, com direito a páginas amarelas, capa de couro e tudo mais.
Coloquei-a em suas mãos e pedi que escolhesse uma fábula, lesse em voz alta e me explicasse seu significado. Vale lembrar que todas as fábulas são em poesia. Ele escolheu O Olho do Dono, traduzida pelo Barão de Paranapiacaba.
Depois de lida e interpretada rapidamente, ele saiu.
E lá eu fiquei imersa em pensamentos.
Personifiquei o tal dono descrito na poesia e trouxe para a minha realidade — a realidade de mãe.
O dono era a mãe. As vacas, os filhos. Os servos, as pessoas próximas que convivem diariamente conosco.
E o cervo?
Quem seria o cervo?
Quem seria aquele que insiste em permanecer escondido aos meus olhos, mas presente na vida dos meus filhos?
O cervo é aquele que, apesar de muito bem oculto, não foge ao olhar atento de uma mãe. Não escapa aos “cem olhos” do dono.
É aquele que só uma mãe vigilante e perspicaz consegue enxergar.
Ele é o intruso que os servos não enxergam e não veem. Por melhor e mais bem-intencionados que sejam — avós, professores, funcionários, amigos, parentes — há coisas que não podem enxergar. Não porque não se importam, mas porque não possuem o olhar da mãe. Eles não veem o cervo.
Mas a mãe vê. Mesmo que ele esteja muito bem escondido e camuflado.
Porque só a mãe tem cem olhos.
E cada vez mais imersa nos meus pensamentos, eu indagava – Mas quem é, afinal, esse cervo? Será que ele está no “meu curral junto com as minhas vacas” e eu desatenta não o vejo?
Pensei em tudo o que esse cervo representava.
O cervo é a influência sutil que se infiltra nas pequenas coisas do cotidiano.
É aquele que se esconde, que se camufla, que passa despercebido aos olhos distraídos.
É o olhar de um estranho que diz mais do que deveria.
É a tela brilhando, cheia de vozes e imagens atraentes que não pertencem ao lar.
É a ideologia que se disfarça de conhecimento.
É a verdade distorcida. A moral relativizada. A presença invisível que sussurra ao ouvido da criança.
O cervo não anuncia sua presença. Não faz alarde.
Esconde-se nas brechas, nos descuidos, na distração.
O cervo não precisa ser alguém. Ele pode ser algo. Uma ideia. Um pensamento. Um hábito nocivo.
E, por isso, cabe a mim – à mãe ter cem olhos.
Pois só a mãe vê o que ninguém mais vê.
E só quando ela vê, é capaz de proteger.
“Olhares como o do dono
Outros não há vigilantes”.
Uma resposta
Muito verdadeiro! “Pois só a mãe vê o que ninguém mais vê.”
Como é gratificante perceber o quanto Deus capacita as mães.
Como Ele cuida das mães para que essas tenham grande esmero para com a alma de seus filhos.